a Carlos Drummond de Andrade


Nasceste de carne e osso.
E de tanto viver entre montanhas e respirar sobrados
adquiriste o ferro de tua cidade. Por muito tempo
não soubeste se teu corpo
tinha mais da matéria orgânica
ou da metálica.

A vida provinciana que ruminavas
em ruelas paradas e poeirentas
tua vida desafogada e escassa de boi resignado e inócuo
e até tua vida exposta cruamente nas livrarias
das pequenas e grandes cidades do país
habita hoje involuntariamente o dia a dia
de banhistas transeuntes taxistas
besuntada em bronze e azinhavre
perfumada de uma inalcançável maresia.

Os miúdos olhos boiando em complacência
mesmo quando alguém lhe rouba os preciosos óculos.
A cabeça francamente doada ao passeio das aves
e às primeiras gotas de chuva
do inverno de Copacabana.

Enfim o metal em ti prevaleceu.
Te veste essa nudez de ferro
que não se dissipa (de estanho e cobre
os teus pecados?). Mas mesmo imóvel e imortal
rígido e indissolúvel como um teorema
ainda pareces — ainda és — humano demais.


*

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Meio-dia. Tempestade
de areia. Atravesso a poeira
dentro de um ônibus:
respiração pesada
coração parado vento

na cara acordada.

A cidade segue: apertada
entre os seus meios-fios.
E nada desconfia
do anjo azul sentado ao sol.
Nem as janelas dos carros.