à deriva

1.
o poema respira
inútil mensagem
boiando
no meio de um oceano
de possibilidades
entre os cheiros
de grafite e cal
sensação de maré
e cais

2.
a mão escrevera
pássaro
e um corpo tênue
atravessou o pulso
construindo itinerários
a mão
escrevera escafandro
e agora abre caminho
entre cardumes braços
de mar e mangue

3.
posso sentir
o gosto de musgo
nos lábios
fosca carne de peixe
dentro da concha
dos dentes









Na fria máquina feita de aço e borracha partirá. Mas ele se detém. Espera. Como se estivesse no cais de um grande porto. — Não esqueceu nada? Esquecera sua coleção de bolas de gude. A velha cartilha não esquecera: já não vai servir pra nada mas guarda-se, como lembrança. Esquecera seus avós seus tios sua prima histérica a horta no fundo do quintal a amendoeira a filha engraçadinha do vizinho as manhãs com cheiro de leite a sombra que nos dias de sol ficava ao pé da amendoeira a comida da sua avó os varais onde as roupas secavam a tarde nos armazéns desativados e a tarde comum do bairro com seu céu particular a sorveteria no final da rua o sujeito misterioso que ponteava viola a bicicleta a velha fábrica de sapatos os monstros que habitavam o quintal à noite as primaveras-sem-fim os banhos de chuva os banhos de rio os finais de semana no litoral o pequeno restaurante de frutos do mar que ficava perto da sua casa. Esquecera de pôr tudo isso dentro de uma caixa que levaria agarrada ao peito até a última parada até a última estação até o fim

dezembro de 2006

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leia também aqui
poema do livro cartilha, disponível aqui