Na fria máquina feita de aço e borracha partirá. Mas ele se detém. Espera. Como se estivesse no cais de um grande porto. — Não esqueceu nada? Esquecera sua coleção de bolas de gude. A velha cartilha não esquecera: já não vai servir pra nada mas guarda-se, como lembrança. Esquecera seus avós seus tios sua prima histérica a horta no fundo do quintal a amendoeira a filha engraçadinha do vizinho as manhãs com cheiro de leite a sombra que nos dias de sol ficava ao pé da amendoeira a comida da sua avó os varais onde as roupas secavam a tarde nos armazéns desativados e a tarde comum do bairro com seu céu particular a sorveteria no final da rua o sujeito misterioso que ponteava viola a bicicleta a velha fábrica de sapatos os monstros que habitavam o quintal à noite as primaveras-sem-fim os banhos de chuva os banhos de rio os finais de semana no litoral o pequeno restaurante de frutos do mar que ficava perto da sua casa. Esquecera de pôr tudo isso dentro de uma caixa que levaria agarrada ao peito até a última parada até a última estação até o fim

dezembro de 2006

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poema do livro cartilha, disponível aqui



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